2.7.11

Capítulo I | L. (série Retrato)


Na fotografia, a moça é todo dia a mesma. Delicada com seus cabelos escuros, é jovem para sempre. O papel que carrega a imagem está desgastado num efeito melancólico do tempo e da câmera analógica. O preto e o branco fazem festa e se combinam em tons coloridos de cinza, só para vê-la brilhar.

A velha olha e não se encontra. Talvez os olhos - duas peças tristes que não se encaixam no retrato - façam sentido. Duas esferas escuras de dor onde o riso foi destaque. Sempre estiveram ali, pregadas em seu rosto, lembrando ao espelho o que nunca seria possível.
Não se iluda, dizia seu reflexo, você nunca será como as outras pessoas. Jamais verá leveza na vida. Jamais preencherá o vazio que há no seu peito. A moça, tola, ouviu. Aceitou. Numa de suas tentativas nulas de tapar o buraco do coração, conheceu o uísque.

Esqueceu-se das festas, abandonou a pintura, enconstou o violão e não notou as cordas que desafinaram e juntaram poeira. O rosto que se perdeu das cores, os dissabores, a incompletude. A fotografia se tornou um resumo de tudo o que L. havia deixado de apreciar. Se o álcool a mantinha em pé, qualquer outra coisa era capaz de derrubá-la. E num crime hediondo do mundo, andar se tornou um desafio, tal como se divertir ou sorrir.

Os filhos, o marido, os amigos: ninguém foi capaz de despertar em L. a vontade de viver. A vida era apenas uma pedra incômoda em seu sapato, um obstáculo que ultrapassava penosamente para chegar ao fim da linha. Queria a paz de beber até dormir, secar as lágrimas no travesseiro, queimar os lençóis com a ponta do cigarro sem ser incomodada por pessoas preocupadas. Entendia o amor como causa disso tudo, mas buscava a solidão com empenho suficiente pra sentir-se ofendida com a companhia.

A fotografia - todo dia a mesma - é tudo o que resta de concreto sobre L.
Alguns, poucos, lembram de seu riso. Outros comentam sua presença silenciosa no canto das confraternizações, sua voz serena e rouca, suas mãos pequenas, a delicadeza de seus passos. São lembranças que se extinguem. Memórias que se esfarelam vagarosamente enquanto todos dormem. O tempo apaga, como tenta apagar a fotografia. Hoje, dói admitir, é notável como ele vai conseguir. E começou pelos olhos, as duas peças tristes, as esferas escuras de dor.

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