28.6.10

last night, she said

Ela não se esquece de deixar claro o quanto é fácil passar por cima de mim. Basta que as luzes se apaguem, o álcool faça efeito, um mínimo de espaço e ela revela sua existência ridícula. Fala demais, essa menina que não tem o que dizer. Ri demais e acha graça de tudo. É muito agradável, e você quer tê-la, mas tem algo de agressivo, algo que te faz sentir mal. Por que ela não fala o nome inteiro? Por que ela some e sai andando entre as pessoas cada vez que você se distrai? Por que falar de astrologia se ninguém acredita mesmo? Por que perder o mistério, se ninguém quer realmente saber sobre sua ideologia barata de gente sem futuro? Sou só um amontoado de ideias perdidas que ela revela sem me pedir licença e depois fica achando bonita minha contradição quando amanhece.

Ela é ótima na arte de acumular pessoas, no sentido da palavra. Não conquista, não agrada, acumula. Chega sozinha, vai embora sozinha, mas gasta um repertório inteiro de palavras e se despede de todos os semi-conhecidos da noite. Alguém vê através disso? Talvez seja o único motivo pra eu ainda deixar isso acontecer. Tinha me acostumado a ser cenário e quando ganho personagem, acho pedir demais escolher o que interpretar. Que venha qualquer coisa fútil alegrar meu figurino, que seja brilhante, que seja inesquecível, mesmo que seja feio. Essa Verônica é mesmo um sopro de qualquer coisa doce e enjoativa com o pior dos venenos, fazendo com que minha presença seja ao mesmo tempo marcante, confusa, passageira e duvidosa. É como conhecer todo mundo e não conhecer ninguém. Pior: é como se todo mundo me conhecesse e ninguém realmente quisesse saber de mim. Só dessa louca que sai por aí sendo tudo ao mesmo tempo e nada, pra finalizar.

Ninguém desconfia do que resta pela manhã. E talvez seja bom assim. Talvez seja uma espécie de proteção essa adaptação de quem sou eu em cada lugar que eu vou. Deve ser melhor do que ficar de braços cruzados no canto de um bar porque a única amiga que foi junto está ocupada e tenho medo de multidões em que não conheço ninguém. Talvez essa superficialidade seja só um ensaio do que um dia vou chamar de personalidade. Essa mesma, que eu escondo durante a noite. E a única dúvida que resta não é qual das duas eu realmente sou. É qual de nós é realmente importante. E talvez eu nunca descubra isso.

27.6.10

a alma já foi

Amanda nunca havia estado num funeral antes. Achava ruim que sua primeira vez fosse para assistir ao desfile do caixão de sua melhor amiga, mas sua mãe, que sempre evitava exposições a este tipo de ritual que foca toda a espiritualidade num lugar, não opinou sobre sua presença desta vez. Rezar para o que quer que fosse, pedir ao céus, era muito bonito, mas isso não precisava ser feito na igreja, numa missa. Não era superproteção nem coisa do tipo, era só porque não valia a pena ver um corpo morto e ficar com lembranças tão tristes se a alma já não estava mais ali. Dessa vez, ignorou todo o discurso porque não se tratava de suas crenças, e sim da sua filha sofrendo uma perda que não tinha palavra de conforto pra melhorar.

Viu o corpo inerte da amiga e a lágrima quis sair. "Mas a alma não está mais aqui", ouviu a mãe dizer em sua cabeça. A mãe observava de longe querendo conter sua lágrima e lembrá-la que a alma não estava lá. Suas vibrações chegaram de algum modo.

Mas a alma que já não estava lá talvez precisasse de um abraço, ela pensou. E pensou também que o corpo lá estirado podia ser o seu próprio, se não fosse por alguns segundos de sorte e paramédicos desfocados. Em algum momento enquanto esteve no hospital, chegou a pensar sobre isso também, sobre como seria, até desejou morrer um pouco para experimentar a sensação de quebrar a rotina e conhecer o outro lado.

Passou a mão na barriga e desejou que seu filho também tivesse um funeral. "A alma já não está mais aqui". Mas a família não sabia, nem podia saber, não apoiariam. Já havia causado muita discórdia ao acidentar-se numa carona de um carro de desconhecidos, não podia revelar o aborto que sofreu com a batida. Se fosse como a amiga, que não se lembrou do cinto de segurança, não precisaria mais ouvir os pais moralistas, nem passaria vergonha com suas imagens ferida na TV. Seria só mais um número nas pesquisas sobre mortes em acidentes de carro com motoristas alcoolizados.

Caminhou de volta até o alto do cemitério que mais parecia um parque verde e bonito, distanciou-se da multidão que acompanhava o caixão vazio de alma. Atrás deles, o pôr-do-sol. Era tão bonito, que desejou não ver mais nenhum outro depois deste, pra poder guardar esta última imagem. Como os corpos, que deviam ser lembrados com rostos corados e sorrisos vivos.

Fez uma breve lista mental de prós e contras que habitariam o próximo passo: vão achar que foi tristeza, vão colocar uma foto 3x4 minha na TV e nos jornais, nunca mais verei ninguém. Não quero mais pôr-do-sol, verei meu bebê, não quero voltar pra casa hoje.

E caminhou em direção a rua, mergulhando no primeiro viaduto na saída do cemitério. Não pelos argumentos listados, não pela aversão à raça humana, não por nada especial. Diriam que foi depressão, que foi a idade, que adolescência é mesmo uma fase difícil. Mas foi pura física, quando a terra chamou seu corpo e o céu aceitou seu espírito.

Não havia mais nome escolhido durante a gravidez, não havia covinhas nas bochechas, brilho nos olhos, não haveria um aniversário de dezoito anos. Não haveriam aulas da auto-escola, nem primeiro voto nas eleições. Amanda foi e levou toda uma identidade que deixava de ser vida, e, ignorada, passava a ser superestimada, como todos os que já foram.

Alguém gritou, o pai negou, a mãe correu. Abraçou o corpo da menina que já não tinha expressão. "Minha alma não está mais aqui", disse em seu ouvido. E a lágrima caiu.

9.6.10

Essa minha mania de falar o tempo todo é só porque eu acho o silêncio pesado demais.