3.7.11

O dia em que matei meu pai

Eu precisei fazer isso. Não é da minha natureza, eu sei, foi instinto, foi loucura, foi momento e nada justifica, entendo, mas ouça o que eu estou tentando dizer: que morte não é fim, é transporte e às vezes matar alguém é a forma mais bonita de colocar essa pessoa num lugar digno e respeitável.
Ele estava na minha frente e fazia frio, ele ria do meu futuro, ridicularizava minhas escolhas e mais uma vez (como eu odeio esse homem, como eu odeio ele) seu corte de cabelo me irritou, seu nariz, meus traços distorcidos em seu rosto (eles riam de mim, não pude evitar), tudo aquilo que eu tentei mudar pra apagar sua existência, gritava. Eu não queria a genética em evidência, sua voz, sua fala pausada, oh, o que eu fiz, me diz, me ajuda a fugir. Pra não destruir tudo, só pude destruir.
Por muitos anos vivi uma culpa que não me cabia, culpa vã, triste. Não amava meu pai e sofria por acreditar imoral. Mas você tem que amar, diziam, é seu pai. Como se o simples fato de fornecer material genético o livrasse de seus pecados, como se uma noite de sexo perdoasse sua ausência. Mas mesmo o amor familiar é conquista, a convivência talvez o crie, mas a falta de intimidade destrói. Nunca amei, não mereceu, não mereceu nada que viesse de mim.
E eu estava perto demais, o silêncio que era meu tesouro estava quebrado (quem mandou entrar nos meus pensamentos?), seus olhos refletiam minhas falhas, minhas fraquezas, todo o amor excessivo que eu espalhei por me faltar, minha cegueira emocional (tive vontade de vomitar e não tinha comido, nem colocar pra fora eu conseguia), quanta merda eu fiz, quanta gente bagunçou minha vida, me machucou e eu deixei, quanta falta de tato em relações e relacionamentos e é tudo culpa sua. Você e sua vida infeliz, você e seus olhos sem amor, seu coração gelado. Por que você não morreu antes? Por que eu precisei fazer isso, por que minhas mãos é que tiveram que se sujar com seu sangue nojento? O mesmo que o meu e tão sujo. Tudo que vem de você é sujeira e eu precisei ver sua vida ir embora na minha frente pra acreditar que finalmente estava livre. E você continua nos meus sonhos. Infeliz. Vá logo das lembranças, eu te exorcizo, eu te expulso, não te quero.
Matar você foi a melhor coisa que eu já fiz. E a pior. E com tudo o que você já me fez passar, com cada conto de merda, resumo a obra pro mundo: meu pai morreu. Acidente. Já faz tempo, tudo bem. Não se preocupa, já passou. É, eu contaria essa história.
Não tenho vocação pra filha desamparada e aquele homem ria do que não tinha graça. O que eu poderia fazer? Eu diria que ele fez Édipo ter sentido, que distorceu a imagem de herói na minha cabeça, que me fez desconfiar até das melhores intenções e que é um filho da puta que eu odeio, mas nada disso faria sentido, nada disso afetaria sua arrogância. É desse sorriso que eu tenho mais ódio, como pode sorrir alguém que faz mal aos outros, como pode ser que não exista justiça divina ou qualquer merda dessas? Porque se o castigo dele é a solidão, porra, estou sendo castigada também e essa merda não devia acontecer. Ir pro buraco e me arrastar junto, isso é errado. Assim como é errado o que eu fiz.
Vi o sangue ir todo embora e manchar o chão e manchar meu dedos, assisti seus olhos se revirando, mais vivos do que nunca e tudo isso começou a doer em mim. E então era eu quem sangrava e dos meus olhos saiam as lágrimas (ele não as possuia, por defeito de corpo ou de caráter). Doeu tanto em mim porque eu percebi que jamais conseguiria ser igual a ele, por isso não poderia matá-lo. Eu não fui até o fim.
Acordei com o rosto vermelho de choro, o travesseiro úmido, o coração apertado. Um novo pesadelo e o mesmo pai ausente. E vivo. De sempre. De nunca mais.

2.7.11

Capítulo I | L. (série Retrato)


Na fotografia, a moça é todo dia a mesma. Delicada com seus cabelos escuros, é jovem para sempre. O papel que carrega a imagem está desgastado num efeito melancólico do tempo e da câmera analógica. O preto e o branco fazem festa e se combinam em tons coloridos de cinza, só para vê-la brilhar.

A velha olha e não se encontra. Talvez os olhos - duas peças tristes que não se encaixam no retrato - façam sentido. Duas esferas escuras de dor onde o riso foi destaque. Sempre estiveram ali, pregadas em seu rosto, lembrando ao espelho o que nunca seria possível.
Não se iluda, dizia seu reflexo, você nunca será como as outras pessoas. Jamais verá leveza na vida. Jamais preencherá o vazio que há no seu peito. A moça, tola, ouviu. Aceitou. Numa de suas tentativas nulas de tapar o buraco do coração, conheceu o uísque.

Esqueceu-se das festas, abandonou a pintura, enconstou o violão e não notou as cordas que desafinaram e juntaram poeira. O rosto que se perdeu das cores, os dissabores, a incompletude. A fotografia se tornou um resumo de tudo o que L. havia deixado de apreciar. Se o álcool a mantinha em pé, qualquer outra coisa era capaz de derrubá-la. E num crime hediondo do mundo, andar se tornou um desafio, tal como se divertir ou sorrir.

Os filhos, o marido, os amigos: ninguém foi capaz de despertar em L. a vontade de viver. A vida era apenas uma pedra incômoda em seu sapato, um obstáculo que ultrapassava penosamente para chegar ao fim da linha. Queria a paz de beber até dormir, secar as lágrimas no travesseiro, queimar os lençóis com a ponta do cigarro sem ser incomodada por pessoas preocupadas. Entendia o amor como causa disso tudo, mas buscava a solidão com empenho suficiente pra sentir-se ofendida com a companhia.

A fotografia - todo dia a mesma - é tudo o que resta de concreto sobre L.
Alguns, poucos, lembram de seu riso. Outros comentam sua presença silenciosa no canto das confraternizações, sua voz serena e rouca, suas mãos pequenas, a delicadeza de seus passos. São lembranças que se extinguem. Memórias que se esfarelam vagarosamente enquanto todos dormem. O tempo apaga, como tenta apagar a fotografia. Hoje, dói admitir, é notável como ele vai conseguir. E começou pelos olhos, as duas peças tristes, as esferas escuras de dor.